quarta-feira, 7 de agosto de 2013

VALAS

VALAS
Samuel Castiel Jr.










         A antiga cidade de Porto Velho possuía inúmeras valas. Sem rede de esgoto, as valas estavam em quase todos os bairros. E por elas escorriam desde águas pluviais até substâncias mais poluídas e contaminadas, as vezes até mesmo  excrementos, onde habitavam ratos, baratas, insetos, cobras e lagartos. Na época das chuvas torrenciais, essas valas serviam para drenar as águas e levá-las em direção ao rio. Eram profundas e largas. Passavam na frente ou no quintal das casas. As pessoas tinham que improvisar  pequenas pontes para entrar e sair de suas residências. Algumas delas, dependendo do terreno, continham lodo, lama escorregadia e até mesmo movediça.
          Uma senhora pioneira desta cidade, chamada Dona Anita, esposa do Seu Arruda, foi vitima dessas valas. Nos fundos de sua casa, na rua Campo Sales, próximo a Av. 7 de Setembro, passava uma enorme vala que desaguava em uma galeria de águas pluviais  e esgotos, estendendo-se por baixo de onde está hoje a loja Marisa, passando também por baixo do Cine Lacerda, do antigo Banco Sudameris para desembocar no rio madeira. Após uma forte e torrencial chuva, a vala transbordou e inundou o quintal da Dona Anita, que foi ver o que estava acontecendo, e na tentativa de desobstruir a vala, caiu e foi arrastada pelas águas revoltas e barrentas. Sua irmã Sidrone que viu tudo, correu e chamou quem estava por perto. Dona Anita então foi resgatada da galeria, em baixo do Cine Lacerda, puxada pelos cabelos, pois usava longas tranças. O curioso é que saiu incólume, sem nenhum arranhão sequer e, ainda por cima, com os óculos de grau que usava! Ela era espírita!...
         Talvez por uma questão cultural  importada do sangue português, era hábito algumas residências abrir uma pequena venda  geralmente de cachaça ou de alguns gêneros de primeira necessidade, com uma espécie de janela que dava acesso para a rua. Ali se postavam históricos pinguços e boêmios que passavam o dia e até altas horas da noite bebericando pinga e falando da vida alheia.
        “Capote” era um criolo grande, exímio tocador de violão. Tanto tocava como bebia pinga. Bebia para ter inspiração – dizia ele. Gabava-se  ainda que bebia bem e tinha sorte, pois era capaz de beber sozinho mais de duas garrafas de pinga sem dar vexame e voltando pra sua casa já pela madrugada,  de bicicleta e com seu violão pendurado nas costas. Tocava de tudo, mas principalmente boleros e samba-canções com os repertórios da década de 50 e 60, tipo Anisio Silva, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves e Lucio Alves. Fazia também algumas internacionais tipo Bienvenido Granda ( El bigote que cantava) e Nat King Cole. Bastava que alguém pagasse para ele um “gole” e o negão cantava e se acompanhava ao violão como ninguém. Mas, na véspera de um feriado prolongado o negão exagerou e não se deu bem nem teve muita sorte como dizia.  Costumava ir de bar em bar, tomando todas, tocando e cantando. Quando encontrava alguém que lhe pagasse uma pinga, ali é que ele  ficava! Pois bem, depois de tocar e beber em alguns bares, chegou na casa do Seu Osório Manco, que possuía uma dessas vendinhas abertas tipo janela para a rua, na Tenreiro Aranha, e que tinha alguns banquinhos do lado de fora, bem como uma enorme vala na frente, a qual vinha lá das bandas do bairro da Olaria e terminava na avenida 7 de setembro. Para chegar até a vendinha, tinha que passar por uma ponte improvisada com pedaços de madeira. “Capote” chegara  no Seu Osório Manco no final da tarde de um sábado, com sua bicicleta e com o violão nas costas. Já tinha bebido em vários botecos onde era “habituè” em sua via sacra. Estava  visivelmente embriagado. Sentou-se e pediu uma dose de Cocal, cachaça paraense e uma de suas preferidas, pelo sabor e pela transparência, pois era quase incolor. Pegou seu violão e começou a cantar e tocar, dedilhando com maestria  músicas de seu vasto repertório. Logo foram chegando outros fregueses do Osório Manco e todos faziam coro e aplaudiam no final de cada canção cantada pelo “Capote”. Tinham direito a fazer pedidos desde que pagassem seu próximo “gole”. E assim a coisa foi rolando. A noite chegou, alguns se foram mas outros ficaram ou chegaram e a bebedeira entrou pela madrugada a dentro. Já quase meia noite, o Osório Manco disse que ia fechar seu negócio, pois tinha que ir dormir e sua patroa já o chamara pela décima vez!...
--Calma aí Osório, afinal amanhã é domingo e segunda-feira vai ser feriado! Ainda dá pra tomar mais uma –dizia o “Capote”, já com a voz muito pesada!
          Assim é que conseguiram ficar lá até 3 horas da manhã, quando o Osório Manco fechou a sua venda e anunciou a todos:
--Olha aqui, gente: agora tô fechando mesmo. Quem quiser ficar aí fora que fique!
--Ok Osório, mas antes de fechar, deixa uma garrafa de Cocal pra gente. O pessoal já fez a “vaquinha” e aqui tá o dinheiro!
         Osório Manco, claudicando como sempre, foi lá prá dentro e voltou com a garrafa de pinga.
--Aqui está, prá não dizer depois que eu sou sacana! Mas acho que vocês todos deviam ir dormir agora. Esse bairro é perigoso, tá muito escuro, pode aparecer alguém, algum assaltante, sabe como é!..
--Tudo bem Osório, você é caba bom! Deixa pra  gente só mais uns dois ou três limões que é pro tira-gosto. Daqui a pouco vamos todos embora – disse-lhe o “Capote”.
 --Leva aquela do Silvio Caldas “Capote” – pediu-lhe um dos amigos. Aquela que fala das “Cinco Letras que Choram”...
         Somente a lua clareava aqueles notívagos. Os acordes afinados e plangentes do violão podiam ser ouvidos a distância, tal era o silêncio da madrugada!...Mas aos poucos todos foram saindo e deixaram o  rebelde “Capote” sozinho, que relutava em ir pra casa.
         No domingo quando o Osório abriu novamente a janela da sua venda, viu tudo desarrumado, a garrafa de pinga vazia, copos quebrados no chão, pedaços de limão atirados por todos os lados, junto a  incontáveis  baganas de cigarro. Porém, o que mais chamou a atenção do Osório Manco, foi ter visto a bicicleta do “Capote” ainda estacionada  e apoiada  no “descanso” do mesmo jeito que ele tinha deixado quando chegou no dia anterior. Pensou logo que ele teria ido a pé, levado pelos amigos boêmios que ficaram com ele naquela madrugada de seresta. Mas, quando foi limpar aquela sujeira toda que os bebuns haviam deixado, olhou para o interior da vala. E o que viu quase o fez desmaiar: o “Capote” estava em pé, no fundo da vala, enterrado na lama até acima dos joelhos, com seu violão pendurado na costa. Chamou por ele, gritou, mas não havia nenhuma reação. Resolveu chamar sua mulher e outras pessoas que passavam na rua, já voltando da missa. Juntaram-se vários curiosos e o Osório Manco correu pra chamar um guarda que passava na outra rua. Afinal, a polícia tinha que ser chamada! Quando o guarda chegou, pediu uma corda e desceu até o fundo da vala, constatando o que todos temiam: o “Capote” estava morto!
--Coitado do “Capote” – dizia o Osório Manco. Morte triste! Morreu em pé!
       E algum dos curiosos,  mais atrás, quase na orelha  do Osório Manco arrematou:
--O “Capote” era duro na queda!...

PVH-RO, 07/08/13

Um comentário:

  1. Muito bom. Ainda alcancei estas valas pela cidade quando cheguei em 1986.
    Ali em frente ao Rondon Hotel, eu ficava da janela do apartamento vendo ratazanas, do tamanho de um gato, brigando por restos de comida, despejados pelos funcionários do hotel.

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