quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A CAÇAMBADA

A  CAÇAMBADA

Samuel Castiel Jr.











                       “O destino é cruel e os homens são dignos de compaixão.”
                         Arthur Schopenhauer


           O velho relógio na parede marcava 17:15 h. O expediente da Prefeitura encerrava-se as 17:30 h. Era uma sexta-feira e eu estava doido pra sair e começar meu final de semana. Mas o telefone tocou quando eu já arrumava minhas coisas pra sair. Atendi. Do outro lado da linha a voz rouca do chefe da garage ordenou-me que liberasse uma das caçambas basculantes  que estavam no pátio para atender a uma emergência no bairro da Olaria. O motorista Nilson  Oliveira já estava se dirigindo para a garage com o objetivo de sair com  a caçamba. Ainda perguntei se seria preciso esperar seu retorno para guardar a viatura.
-- Não. Você libera a caçamba e pode sair.
           E foi exatamente o que fiz. Entreguei a chave para o Nilson que apenas me perguntou se o carro estava abastecido.
-- Sim. Lavado e abastecido – respondi a ele.
        Como responsável pelos veículos oficiais da Prefeitura, recebia ordens diretamente do Prefeito José Saleh Moreb ou do chefe da garage.
             Nunca imaginei que naquela noite do dia 26 de setembro de 1962 eu estaria indiretamente envolvido com um dos maiores crimes políticos do País.
         Havia naquela época dois grandes grupos políticos em Porto Velho: Cutubas e Peles-Curtas, e que viviam se degladiando e se alternando no poder. Os cutubas eram liderados pelo Cel. Aluizio Ferreira que representava a direita toda poderosa e que já estava no seu terceiro mandato de deputado federal. Os peles-curtas eram capitaneados pelo médico Renato Climaco Borralho de Medeiros, líder negro da coligação de centro, presidente do partido Social-Progressista e comandante da Frente Popular, e que surgia como a grande esperança dos oprimidos, perseguidos, pobres e desvalidos. Nesse ano, 1962, o Cel. Aluizio Ferreira decidiu não mais concorrer a vaga de Deputado Federal, porém indicou seu substituto, o Major e Engenheiro Militar  Enio Pinheiro, seu primo, o qual já tinha sido Diretor Geral da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e Governador  nomeado pela segunda vez, por indicação novamente de  Aluizio Ferreira em 1961. A disputa ficou acirrada como sempre e naquela noite de 26 de setembro de 1962, os pele-curtas faziam seu último comício antes da eleição.
           Nilson saiu da Prefeitura as 17:30 h, com a missão de ir prestar um socorro no bairro da Olaria, mas dizem que na realidade essa caçamba teria ido dar suporte ao comicio dos cutubas que, simultaneamente estava acontecendo no bairro do Areal. Na volta, ele "erra" o caminho, que é diametralmente oposto, e dá de cara com a multidão de aproximadamente 5.000 pessoas aglomerada para o comício dos peles-curtas, na rua Lauro Sodré, próximo onde funcionau a Rondasa, antiga concessionária da Volkswagen. Estaciona a caçamba e vai até um boteco na esquina tomar um trago. Conhecia bem aquele bairro, pois ali perto ficava o “randevous” da Delicia, onde vez por outra levava suas namoradas. Bebeu vários tragos e, mais tarde, resolveu que deveria ir embora. Ao se dirigir ao veículo, que estava estacionado próximo a uma esquina, foi reconhecido por alguém que gritou:
--Olha aqui um traidor cutuba! Vamos dar umas porradas nele, gente!
            Nilson correu em direção a caçamba, trancando rapidamente as portas. A multidão enfurecida começou a apedrejar o veículo e tudo virou uma histeria e fúria coletivas. Foi então que Nilson acuado e apavorado, com medo de ser linchado, ligou o motor e saiu com a caçamba, na tentativa de chegar até a esquina para tentar sair do meio daquela turba enlouquecida. O pânico então se estabeleceu e o horror se estampou no rosto das pessoas que aos gritos caiam, eram pisoteadas ou atropeladas pela caçamba. Corpos feridos, ossos quebrados, gritos de desespero. A caçamba felizmente estancou e o Nilson conseguiu sair do veículo, misturou-se na multidão, mas foi preso imediatamente, o que o salvou do linchamento. Os feridos e quebrados chegavam aos montes ao Hospital São José ( hoje Policlinica da PM). A Direção do Hospital solicitou a presença de todos os médicos para ajudar no atendimento aos feridos. Para completar esse quadro de desespero, as luzes da cidade apagavam-se a meia noite para poupar combustível e geradores, só voltando a funcionar as 5:00 h da manhã. A escuridão só era quebrada pelos farois dos carros que passavam em alta velocidade, levantando muita poeira. O quadro era aterrador! As pessoas desesperadas em busca de notícias e de seus familiares aglomeravam-se na porta do Hospital São José. Mesmo assim, para o grosseiro e coletivo atropelamento, as vitimas fatais, que morreram no local, foram apenas três, porém dezenas de feridos e quebrados foram contabilizados. Proporcionalmente, e caso a caçamba não tivesse estancado, poderia ter sido bem pior. Os peles-curtas no dia seguinte saíram numa passeata pela avenida 7 de Setembro, clamando por justiça e pedindo a punição dos culpados. Esse episódio marcou o fim do aluizismo, pois o médico negro Renato Medeiros ganhou as eleições com ampla maioria. Entretando a Revolução de 64, sepultaria por mais de 20 anos o sonho dos oprimidos que ansiavam  por uma república socialista que jamais viria acontecer no País.
            Intrigado com essa tragédia da caçambada, cheguei a prestar depoimento junto a polícia, pois afinal, como funcionário da Prefeitura, tinha liberado a arma do crime para o Nilson naquela fatídica sexta-feira. Esperei  algum tempo e, muito chocado ainda com o que acontecera, e com as hipóteses levantadas de que o Nilson teria recebido ordens do  próprio Prefeito para atropelar a massa de peles-curtas, fui visitar o motorista encarcerado na Casa de Detenção, para onde foi levado depois de ficar alguns dias preso no quartel militar do exercito, pois temiam por sua segurança. Encontrei-o em estado deplorável fisicamente, sujo, magro e barbado, apresentando ainda as marcas visíveis de espancamentos. Perguntei-lhe então o que o levou a cometer aquele massacre com a caçamba, e se alguém o incumbira dessa missão escabrosa. Disse-me que não, que ninguém lhe deu missão alguma. Tudo acontecera por uma infeliz obra do destino. Tinha que ser ele, um simples e pobre trabalhador da Prefeitura, para se envolver nesse imbróglio político sem precedentes na história. E foi assim que, com esse triste e trágico episódio, o Nilson sem perceber sepultava de vez e colocava uma pá de cal no domínio aluizista.
              Antes de me despedir do Nilson na Casa de Detenção, ele me confessou que muitas noites tinha pesadelos horríveis, onde se transformava  num escorpião negro e um caudilho truculento ateava fogo num circulo em torno dele, até que se matasse com o veneno do seu próprio ferrão. Acordava então aos gritos, banhado de suor. Nunca mais tornei a vê-lo.

Nota do Autor:  Alguns dados, datas e nomes de personagens foram extraídos do Documentário  do Jornalista Zola Xavier, publicado no Jornal Alto-Madeira, edição de 08 e 09/09/09.


PVH-RO, 10/09/13

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