quarta-feira, 12 de março de 2014

O SORVETE



O SORVETE

Samuel Castiel Jr.














      Essa guloseima gelada sempre foi meu sonho de consumo nos tenros anos da infância. Era como um prêmio que nossos pais nos davam  quando  aos domingos nos levavam a praça para  brincar e tomar sorvete. Quantas vezes nos perguntavam se desejávamos ir ao cinema, ao circo ou tomar sorvete. O meu voto era sempre a favor do sorvete. Meus irmãos chegavam a ficar irados pois mais lhes apetecia assistir a um filme de Tarzan ou de Faroeste. Assistir Jhon Wayne, Victor Mature ou vibrar com o seriado de “O Zorro”. Ver o Globo da Morte, o palhaço, a mulher de barba ou o atirador de facas para eles  era mais atrativo do que o sorvete. Chegávamos a praça quando o sol já se punha, comíamos pipocas e depois tomávamos sorvete. No intervalo brincávamos de “camon-boy” com revolveres de espoleta, da Estrela. Meu irmão Mimon, o mais velho, era cadeirante, pois nunca chegara a andar com suas próprias pernas devido a um parto prolongado no interior do Pará, que o deixou com a sequela permanente de uma paralisia cerebral. Nós tínhamos que levar o Mimon na sua cadeira, mesmo que as vezes isso atrapalhasse um pouco nossas correrias e brincadeiras.  Acontece que meu pai fazia tudo que o Mimon pedisse a ele, pois o tratava como um filho muito especial, enchendo-o de mimos e carinhos. Certo vez meu pai falou que iria nos levar no próximo domingo  para tomar sorvete na praça. Meus outros irmãos vieram falar comigo que seria melhor ir ao cinema, pois ia passar nas telas do Cine Lacerda “Tarzan, o Rei da Selva”. Protestei e disse que, como sempre, meu voto seria para o sorvete. Sabendo do tratamento especial que meu pai dava ao Mimon, eles fizeram loby e conseguiram que meu pai, como sempre, satisfizesse a vontade do Mimon, ou seja, levaria todos ao cinema. Não tive argumentos para dissuadir meu pai. Fomos todos ao cinema. Acontece que aprendi a lição. Em outras vezes, ficava a semana inteira no ouvido do Mimon, dizendo que seria lançado um novo sorvete delicioso, com uma cobertura especial. Acabei vencendo dessa vez e fomos todos para a praça, tomar sorvete e comer pipocas. Mas, meus irmãos gêmeos não entregaram os pontos. Prepararam uma armadilha que por algum tempo deu certo: ao receber sua bolota de sorvete de morango numa casquinha bem torrada, o Auristélio que era um dos gêmeos, colocou-a em sua boca e a engoliu de uma só vez. Isso foi o suficiente para que ele perdesse o fôlego e caísse para trás. Meus pais e todos nós ficamos apavorados, encerrando nosso passeio e voltando todos pra casa, apreensivos. Muitos finais de semana se passaram sem que voltássemos a praça Mal. Rondon, nem tomássemos mais sorvetes. Acho que eles até enjoaram de tanto ir ao cinema ou ao circo. Um belo dia, concordaram que devíamos voltar a praça para brincar, comer pipocas e novamente tomar sorvete. Acontece que todos podiam ter esquecido da queda do mano, menos eu. Fiquei ao seu lado e quando ele recebeu o sorvete,  adiantei-me e o impedi de engolir a bolota de uma só vez. Como ele foi tomando o sorvete pausadamente, nada de mais lhe aconteceu. Tentei explicar para nosso pai da estratégia montada pelos meus irmãos gêmeos, mas ele não acreditou em mim. Era muita astúcia para uns garotos de 10 anos! Daí pra frente, para evitar que a bola de sorvete fosse engolida de uma só vez, eu me postava ao lado do meu irmão e ficava vigilante. Bastava que eu me descuidasse um pouco para que ele engolisse toda a bola do sorvete de uma só vez e caísse pra trás, sufocado, desmaiado. Percebi aos poucos que aquela estratégia era muito verdadeira para ser apenas uma simulação. A bola de sorvete pode ser de que sabor for,  quando engolida de uma só  vez faz o guloso se engasgar e também desfalecer por alguns segundos. Aprendi então que, por incrível que pareça, há certas pessoas que gostam e se acostumam  com esse desmaio, como se fosse um “barato”, um cheiro forte num lenço ensopado de lança-perfume.
              Por alguns anos ainda continuamos indo a praça Mal. Rondon, até que as namoradas e as paqueras foram substituindo a pipoca e o sorvete. Foi um tempo colorido da minha infância!


PVH-RO, 12/3/14

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