A TORTURA
Samuel Castiel Jr.
Faltavam quinze minutos para meia noite e o sono quase já o dominava
quando o barulho do ferrolho de encontro as grades o fez acordar. De um pulo
pôs-se de pé e viu um soldado do exército entrar em sua cela, enquanto o outro
ficava na porta. Ambos eram altos e fortes e empunhavam fuzis.
---Você vem
comigo! Disse rispidamente o soldado.
Antes de sair puseram-lhe uma venda preta nos olhos. Foi então colocado num
carro que lhe pareceu ser uma camionete.
O carro partiu em velocidade. Depois de rodar por alguns minutos em silêncio, o
soldado que estava ao seu lado bateu em seu ombro e disse:
---Acho bom
você dizer a verdade e tudo o que sabe, meu velho. Caso contrário poderá nunca
mais voltar pra sua casinha, nem rever sua querida família.
---Quero
saber o que eu fiz? Porque estou preso? Pra onde estão me levando?
---Calma
velho! Aqui somos nós que perguntamos. Você só responde.
Depois de alguns minutos o carro
parou e todos saltaram. Andaram guiando-o até aonde deveria ser uma guarita,
pois houve uma rápida parada e algumas vozes foram ouvidas com ordens de
comando. Continuaram andando provavelmente por um corredor, até que uma porta
grande se abriu ruidosamente. Adentraram todos, ou seja, o preso e os dois
soldados.
---Licença
Comandante. Aqui está o homem! –disse um deles.
---Ótimo
soldado! Levem-no para a sala de interrogatórios. Lá já o estão esperando.
---Ok,
permissão Comandante!
Voltaram todos pelo mesmo corredor
até chegarem a uma escada. Anunciaram-lhe então que deveria descer aquela
escada, guiado pelos braços do soldado.
---Não
tente nenhum truque, caso contrário seremos forçados a machucar você.
Aquilo lá embaixo parecia um grande
porão. Úmido e com o odor de mofo.
---Licença Capitão! O Comandante pediu que
comece logo o interrogatório e logo mais ele próprio vai descer para interrogar
esse comunista.
---Sente-o
ali naquela cadeira de ferro, bem embaixo do foco do abajour. Tenha o cuidado
de amarrar suas mãos e pés, pois não quero ter surpresas desagradáveis.
---Sim
senhor Capitão!
Contido e amarrado, com o foco de luz forte em seu rosto, mesmo
já sem a venda dos olhos, ele não conseguia ver nada a sua frente, a não ser
vultos que se moviam em volta de sua cadeira.
---Quero
saber se o senhor está disposto a colaborar conosco ou vai preferir dar uma de
herói – a voz era rude e ameaçadora.
---Não sei
do que o Senhor está falando. Aliás eu nem sei porque estou aqui. Sou um
profissional, pai de família, brasileiro naturalizado, professor universitário,
tenho domicílio e endereço certos e não cometi nenhum delito. Exijo meu
advogado.
---Preste
atenção, seu vagabundo de merda! Você está sendo interrogado pelo Exército
Brasileiro. Aqui ninguém brinca com os adversários comunistas. Ou eles dizem o
que precisamos saber ou morrem. Entendeu? E vou adverti-lo mais uma vez:
responda nossas perguntas e conte tudo que sabe. Queremos saber qual a sua
ligação com Londres, com a União
Soviética ou com Cuba. Quem lá de fora está patrocinando a proliferação do
comunismo aqui no Brasil? Quais são os principais nomes que formam a coluna
comunista aqui no Brasil? Vamos lá seu comunistazinho de merda.
---Não sei
de nada disso que você quer saber. Sou apenas um correspondente da BBC de
Londres. Não tenho ligações com a União Soviética muito menos com Cuba. Não
tenho também nenhum nome para lhe dar. E mesmo que tivesse não entregaria
nenhum amigo. Também não nego que sou do Partido Comunista Brasileiro, o PCB.
Mas isso só diz respeito a mim, é a
minha ideologia. Nunca pratiquei nenhum crime conta o meu país.
Foi quando ele recebeu o primeiro
tapa em seu rosto, que pareceu pegar fogo e seus ouvidos pareciam que iriam
explodir.
---Eu lhe
avisei: aqui no DOI-CODI não se brinca com adversário. Vou lhe dar mais uma
chance para não se machucar tanto: quais os nomes dos ativistas desse Partido
Comunista de bosta? Prometo que se você
me der uma lista mando você embora. Caso contrário...
---Já disse
que não sei do nome de ninguém e mesmo que
Recebeu a segunda bofetada no mesmo
lado que recebera a primeira, só que agora escorreu um filete de sangue do
nariz e do ouvido. Pareceu que sua cabeça ia ser arrancada. Sentiu seu cérebro
vibrar. Sua visão ficou turva por alguns segundos.
---Já vi
que vamos ter que maltratar ainda mais esse infeliz.
Foi até sua mesa, falou ao telefone
com alguém e depois chamou os soldados:
---Levem-no
para a sala de choque.
Deitado sobre a maca de ferro e a ela
amarrado pelas mãos e pés, o algoz capitão se aproximou e disse-lhe:
---Espero
que fale logo tudo que sabe, caso contrário vai receber algumas vibrações que o
ajudarão a se lembrar. É a sua chance de não passar por isso. Portanto, seja
bonzinho e vá respondendo tudo que perguntei.
---Vá-se a
merda Capitão! Já lhe disse que prenderam, estão interrogando e torturando o
homem errado. Eu não sei de nada, não cometi nenhum crime!
Quase não acabou de falar quando o seu
corpo foi sacudido por uma convulsão que o fez levantar a cabeça e os pés. Mais
duas ou três vezes recebeu outras ondas de choque que o fizeram urinar e
defecar. Como não obtiveram nenhum resultado satisfatório, ainda tentaram
arrancar-lhe algumas unhas dos pés e das mãos, porém sem resultado, pois ele
havia perdido a consciência. Mesmo assim, quando começou a recuperar a
consciência, viu que estava deitado e totalmente imobilizado sobre a maca de
ferro, com o foco de luz em seu rosto e uma goteira que vinha de bem alto, com
um pingo d’água, atingindo o centro de sua testa. Não quis acreditar no que
estava sendo submetido. Não quis acreditar até onde a maldade do ser humano
pode ir. Não sabia que horas eram. Porém tinha certeza que estava ali
absolutamente só, pois tirando aquele foco, tudo era escuridão. O único barulho
era o pingo d’água caindo do alto e se espatifando no centro de sua testa.
---Meu
Deus, vou enlouquecer – pensou.
Aos poucos ouviu gritos de pavor que
vinham de bem longe, mas que logo foram abafados pelo som bem alto de um carro.
--Certamente
estão torturando outros companheiros—pensou.
O dia ainda não amanhecera
quando ouviu barulho nas portas. Alguém
estava entrando. Ouviu então a voz de seu algoz, o Capitão. Vinha acompanhado de outros militares:
---Comandante,
esse recurso do pingo d’água é infalível. Caso não dê certo, só nos resta...
---Calma
Capitão! Vou eu mesmo interrogá-lo: Sou o Comandante Geral do DOI-CODI –disse olhando para aquele infeliz todo amarrado e
recebendo o maldito pingo d’água sobre sua testa. Vai agora colaborar com o
Exercito?
---Não sei
de nada do que vocês querem saber, não tenho ligações clandestinas com ninguém
nem no Brasil nem no exterior. Não sou bandido, nunca fiz nada contra o meu
país. Só quero a liberdade e a soberania do meu povo. Deixem-me em paz!
O Comandante puxou o Capitão pelo
braço e falou alguma coisa inaudível ao seu ouvido. A seguir saiu da sala,
acompanhado por todos. Na sequência entraram na sala dois homens fortes, sendo
um negro e outro com traços nipônicos. Puseram-se a desamarar o preso. Uma esperança
de liberdade chegou a ser vislumbrada em sua mente. Foi quando o homem negro pegou
seu pescoço por trás, dando-lhe uma “gravata” até asfixiá-lo e sentir o seu
corpo inerte.
Era o dia 25 de outubro de 1975,
8:45h.
O ministro da Justiça entra
apressado no Gabinete do Presidente da República, General Giesel, e pede
permissão para ler a mensagem que acabara de receber:
“ O Comandante do DOI-CODI, do
quartel General do II Exercito, informa que o comunista Vladimir Herzog,
convocado para depor naquele Comando, cometera suicídio em uma das celas nas
dependências daquele Comando, tendo sido encontrado enforcado com o próprio
cinto de suas vestes”
---Permita-me
comentar, Senhor Presidente, apressei-me em vir comunicar tal fato a Vossa
Excelência porque certamente vamos ter manifestações nas ruas. Teremos que
ficar atentos.
---Esses
comunistas de merda!!! O imbecil do nosso Comando arrumou não só alguns
problemas para nós como as manifestações de rua, os abutres da mídia nacional e
internacional caindo em cima de nós, mas também criou e deu vida a um mártir.
PVH-RO,
23/04/14